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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Francesco Carnelutti



Estando eu na fase final de um trabalho sobre prisão, abordando e fazendo algumas pesquisas me deparei com um livro que tenho já a algum tempo mas nunca o havia lido por inteiro, nem agora o fiz, mas passando os olhos sobre o tema em questão me vi frente a um pensamento muito atual pra mim, mas muito “moderninho” para o tempo em que foi escrito.

Trata-se de um famoso advogado e jurista italiano Francesco Carnelutti.

Digitei o texto, até vou colocá-lo inteiro no meu trabalho, não seria um “encher lingüiça”, simplesmente fiquei maravilhada com o que li. Confesso que só li essa parte, mas me foi suficiente para nascer uma simpatia entre eu e o autor.

Ao mesmo tempo que concordo com ele em gênero numero e grau, como dizem, também me vem na cabeça uma questão: e se fosse comigo? E se fosse com alguém da minha família, amigo? Será que daria para ter um pensamento tão condescendente?

Não sei responder, apenas vou me atrever a transcrever o texto para vocês.

Uma outra hora penso um pouco mais e lanço uma idéia a respeito.

Degustem.





O Preso


“À solenidade, para não dizer à majestade, dos homens vestidos com a toga, contrapõe-se o homem encerrado na prisão. Não me esquecerei jamais da impressão que tive quando, pela primeira vez, ingressei numa sessão penal do Tribunal de Turim. Os profissionais com a toga pareciam estar acima do nível humano; já o réu, aprisionado como um animal perigoso, parecia abaixo desse mesmo nível. Sozinho, pequeno, ainda que fosse de estatura elevada, perdido, ainda que parecesse desinibido, necessitado ao extremo...

Cada ser humano tem suas preferências, inclusive em matéria de compaixão. Os homens diferem uns dos outros até na maneira de sentir a caridade. Este também é um aspecto da nossa insuficiência. Há quem identifique o pobre com o ser humano faminto; há quem o identifique com o vagabundo, ou com o enfermo. Para mim, o mais pobre de todos os pobres é o preso, o encarcerado.

Digo o encarcerado, observe-se bem, não o delinqüente. Digo o encarcerado, como o disse o Senhor, naquele famoso discurso do vigésimo quinto capítulo do Evangelho de São Mateus, que sempre exerceu fascinação incalculável sobre mim. Até ontem, poder-se-ia dizer, cri que preso fosse sinônimo de delinqüente. Porém, eu me equivocava, e o equívoco serve como demonstração de como é impossível meditar suficientemente os ditos de Jesus.

O delinqüente, enquanto não está preso, é outra coisa. Confesso que o delinqüente me repugna. Em certos casos, ele me causa horror. Aconteceu-me presenciar o delito, o grande delito, ao menos uma vez com meus próprios olhos. Os contendores pareciam duas panteras. Fiquei absolutamente horrorizado. E, no entanto, bastou que eu visse um dos homens, aquele que derrubara o outro com um golpe mortal, sendo algemado pelos policiais, que providencialmente acudiram ao local, para que do horror nascesse a compaixão. A verdade é que, apenas algemada, a fera se fez homem.

As algemas, também elas, são um símbolo do direito. Talvez elas sejam, pensando bem, o mais autêntico emblema jurídico, mais expressivo do que a balança e a espada. É necessário que o direito sujeite as nossas mãos. As algemas servem para desnudar o valor do homem. Segundo um grande filosofo italiano, esta é a razão de ser e a função do direito. Quidquid lated apparebit, repete ele: tudo o que está oculto será revelado. O que estava oculto sob as aparências da fera, na manha na manha em que vi um dos homens arremeter contra o outro, era o ser humano. Tão logo lhe apertaram os pulsos com a cadeia, o ser humano ressurgiu: o ser humano como eu, com o seu mal e o seu bem, com as suas sombras e as suas luzes, com a sua incomparável riqueza e a sua miséria espantosa. Foi então que nasceu, da miséria, a compaixão.

Não me terei deixado arrastar pelos arroubos da literatura, no exato momento em que me referi ao delinqüente, ao mal e ao bem, à sombra e à luz, à miséria e a riqueza? Censuraram-me muitas vezes, ainda recentemente, por ocasião de uma desditosa batalha pela abolição do calabouço. Há quem considere semelhante proposta uma ingenuidade. Oxalá ela o fosse! A verdade é que Francisco, por haver interpretado a Cristo melhor do que quantos se dedicaram a essa tarefa, penetrou mais fundo nos abismos do problema penal. Francisco, somente Francisco, ao beijar o leproso, compreendeu o que Jesus quis dizer com o convite para que visitássemos os presos. Os sábios, que continuam considerando a pena, segundo uma fórmula célere, como o mal que se inflige ao delinqüente pelo mal que ele fez uma outra pessoa sofrer, ignoram ou se esquecem do que Cristo disse a propósito do demônio que não serve para expulsar outro demônio: não é com o mal que se vence o mal. Antes que a luz de Cristo houvesse descido aos homens, já Virgilio cantara: “omnia vincit amor”, só o amor é sempre vitorioso.

Poucas vezes presenciei uma fisionomia tão pavorosa como a de um homicida que defendi anos atrás, perante o Tribunal do Júri de uma cidade de Calábria. O réu havia matado intencionalmente dois homens, com dois tiros de pistola, pelas costas. Não vi no seu rosto, sombreado por uma cabeleira escura, sequer um raio de luz. Juntamente com ele, defendi também seu irmão, acusado de havê-lo instigado a matar. No colóquio que mantive com ele, ao chegar ao pavimento inferior, onde estava localizada a prisão, tive de dizer-lhe que infelizmente, não havia esperança de obter mais que o reconhecimento das atenuantes genéricas e a conversão da pena de calabouço em trinta anos de reclusão. Ele me ouviu impassível. Depois disse: “Não perca tempo comigo, advogado. Eu sou um homem perdido. Pense em salvar meu irmão que teve nove filhos.” Naquele momento, um raio de amor iluminou a sua fronte. Não era a sua riqueza aquele amor fraterno, que o fazia esquecer até o destino tremendo que o aguardava?

A verdade é que o germe do bem, em cada um de nós e não apenas nos delinqüentes está aprisionado. Há quem possua mais e quem menos, ninguém entretanto, possui todo o espaço que deveria possuir. Todos, em uma palavra, encontramo-nos presos numa prisão invisível, cuja força não podemos deixar de sentir. Essa angustia humana, que inspira uma corrente da filosofia moderna, de grande notoriedade e indiscutível importância, não é outra coisa que a sensação de aprisionamento. Cada um de nós é prisioneiro, na solidão do seu eu e no amor a si próprio. O delito não é senão uma explosão de egoísmo. O outro não conta; o que conta é apenas o eu. Somente quando se abre para os outros, o homem sai da prisão. Nesse momento, a graça de Deus penetra pela porta que se abriu.

Quidquid lated apparebit, canta o Dies irae.
Poucas instituições são mais felizes que a do filósofo que expressou, com esse verso, a eficácia do direito. A prisão, as algemas, são uma insígnia do direito. Por isso elas revelam a natureza e a desventura do homem. O direito não vai alem de revelar tal desventura. Cada um de nós está encarcerado em uma prisão invisível. Não nos assemelhamos aos animais porque estamos num cativeiro; estamos num cativeiro porque nos assemelhamos aos animais.

Ser homem não é não ser, é apenas poder não ser animal. Essa potencia é a potencia de amar.”

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